De um filme a outro*
ou “Ir
ao cinema no passado”
Morar em uma república de estudantes tem o
lado bom e o lado ruim. Para dar certo é preciso ter espírito gregário, que é
providencialmente acentuado nessa fase da vida. Se temos que nos adaptar à perda
de privacidade, à rotina e às obrigações inerentes, em troca, além de recebermos
o bem máximo da camaradagem podemos exercer atividades em comum, como o lazer.
Um dos que me lembro com saudade é ir ao cinema. Este foi um hábito que compartilhamos
durante os três ou quatro primeiros anos de escola. Não havia até então plantões
noturnos para dar. Tivemos a sorte da cidade, que na época tinha por volta de
trezentos mil habitantes, contar com bons cinemas - Windsor, Regente,
Jequitibá, Ouro Verde - onde se podia assistir aos principais filmes que
estavam em cartaz na capital. Não eram “cinemas de arte”, mas foi neles que iniciamos
contato com alguns diretores clássicos, em sua maioria atuantes nos anos 1970 –
Federico Fellini, Ingmar Bergman, Orson Welles, Woody Allen, Polanski, Claude
Lelouch. É que os filmes – e o gosto do público eram de muito melhor qualidade na
época. Claro, tínhamos Lando Buzzanca e as pornochanchadas nacionais. Porém, Terence
Hill e Bud Spencer estavam lá para equilibrar e por aqui eram feitos filmes até
razoáveis.
Após nos instalarmos nas poltronas,
esquecíamos da vida. Nosso único compromisso era viajar por caminhos e lugares
mágicos, transportados por roteiros de tramas encenadas por Jean Paul Belmondo,
Jacqueline Bisset, Ingrid Berman, Liv Ullmann, Barbra Streisand, Dustin
Hoffman, Donald Sutherland, Jack Nicholson e tantos outros.
Terminada a sessão, comungávamos de um mesmo
pensamento. Pouco importava se era um drama de cunho psicológico, saga, musical, triste,
trágico ou engraçado. Animados, percorríamos os então
tranquilos quarteirões de volta para casa a interpretar as ideias, o sentido da
história, e às vezes da ilusão que acabávamos de viver. E dessa forma agraciados pela dádiva que o
cinema nos concedia seguíamos até a hora de dormir. Livres de preocupações e
encargos, pelo menos até a manhã do dia seguinte, quando acordávamos cedo para
ir à escola.
*Alusão a um filme de Claude Lelouch
De onde adquiri o gosto pelo cinema?
Procurando nos recantos da memória identifiquei o dia em que, levados por meu
pai, assistimos a um filme pela primeira vez. Foi em 1958 e eu devia ter uns 5
anos. Morávamos em Curitiba, no quarto de um hotel simples, de longa
permanência, cujo banheiro ficava no corredor e servia a todos os hóspedes do
andar. Eu e meu irmão dormíamos em colchões no chão e minha irmã, que tinha
alguns meses de vida, em um berço. Meu pai quase não víamos, pois estava sempre
no trabalho ou nos estudos e quando chegava já estávamos dormindo. Mas naquele
dia ele entrara em férias e levou-nos ao cinema. Foi uma sessão matutina de
sábado, que começou com um noticiário; do filme tenho vaga ideia - eram animações
em preto e branco. Devo ter gostado e de qualquer modo, foi um começo.
Da segunda vez eu me recordo mais nitidamente.
Em um domingo à tarde minha mãe nos levou para assistir A Família Trapp
(precursor de A noviça rebelde) - filme alemão que vinha sendo fartamente
anunciado no jornal, o que nos criou expectativas. Fiquei impressionado com a
história, os protagonistas e com a cores; suponho ter sido então que tomei
gosto pela coisa.
Já em São Paulo, meu pai nos levou para
assistir à sessão matutina do desenho A bela adormecida, que seria o último
dirigido pessoalmente por Walt Disney. Era um feriado de 7 de setembro, em 1960.
Pegamos um ônibus que nos deixou na avenida Ipiranga, onde ficava o cinema do
mesmo nome. A sessão já tinha começado quando chegamos. Enlevados pela trama,
personagens, cores e trilha sonora, vivemos momentos emocionantes,
especialmente meu irmão que, com medo da figura da bruxa, próximo das cenas
finais tratou de se esconder no banheiro. Para que ele saísse de lá tivemos que
convencê-lo de que já não havia perigo.
Depois daquela manhã histórica fizemos algumas
incursões esparsas ao cinema levados por nossos familiares do sul, em Porto
Alegre ou em São Paulo. Era uma festa quando eles vinham nos visitar. Foi em
uma dessas ocasiões que conheci a menina Marisol, uma pequena atriz e cantora espanhola
cativante, através do filme “Um raio de Luz”, que assisti com minha tia Esther
em 1961.
Um acontecimento importante viria a tornar costumeiras
nossas idas ao cinema. Fôramos morar em uma vila em que todos os sábados às 20h
era organizada uma sessão de cinema para os moradores. O que faltava em
conforto – cadeiras duras de fórmica eram distribuídas na área improvisada de
um refeitório e uma tela improvisada ao fundo onde projetavam filmes em
carretel – era plenamente retribuído pela promessa da fantasia em que estávamos
prestes a adentrar. As aventuras, épicos, romances e dramas, em geral tinham
censura livre, embora me parecessem destinados a um público com pelo menos 12
anos de idade. Helena de Troia (1956), As aventuras de Tom Sawyer
(1938), Candelabro italiano (1962), Afundem o Bismark! (1960) ...para
um olhar de menino não havia filmes ruins – todos, segundo meu juízo eram bons
ou espetacularmente bons.
E as atrizes? Amores platônicos que eu substituía
a cada semana, pois as elas me pareciam a cada filme ser diferentes e mais
belas. Penso que eu imergia nas histórias guardadas nas películas de celuloide tão
profundamente como nas dos livros que lia. Com a vivência - e as leituras - comecei
a reunir parâmetros estéticos que me guiariam para qualificá-los.
Durariam até o final de 1964 aquelas jornadas
cinematográficas. Dois anos e meio, durante os quais excepcionalmente deixei de
comparecer. Nossa última foi para ver Tarzan e a mulher leopardo,
protagonizado por Johnny Weissmuller. Infelizmente não chegaríamos a assistir Tarzan
contra o mundo, que possivelmente marcou o final sequência de sessões.
Provavelmente no passado não existia público em
quantidade suficiente para a chamada “indústria cultural” enfiar no mercado tantas
produções de má qualidade como vemos hoje. Mesmo nos anos 70, quando se iniciou
o processo de massificação, havia muito espaço para bons filmes. Quando saíamos
de casa, era para assistir a longas-metragens que de antemão sabíamos que eram
conceituadas, pois entravam em cartaz aqui meses ou anos após lançados no
exterior. Mash, Ardil 22, Pequenos Assassinatos, A bela da tarde,
Easy rider, Midnight cowboy, China Town, Ao mestre com carinho... Ficou
na lembrança 2001, uma Odisséia no Espaço, que assistimos no cine
Regina, na avenida São João, em 20 de julho de 1969, dia em que pela primeira
vez o homem pisou na lua. Na volta fomos jogar futebol e trocamos impressões
entusiasmadas.
Cinco décadas se passaram e ainda hoje descubro
- e gostaria de continuar descobrindo - atores e diretores que não tive o
ensejo de conhecer quando eram ativos. Creio já ter assistido à maior parte dos
bons filmes, os mais e os menos conhecidos, os elogiados e os não tão elogiados.
De bate-pronto poderei citar alguns: A noviça rebelde (1965); Mash
(1970; A primeira noite de um homem (1967); Amargo pesadelo
(1972); Amarcord (1973); O terceiro homem (1949); Meu tio
(1958); As férias do Monsieur Hulot (1953); Barry Lyndon (1975); o
já citado 2001, Uma odisséia no espaço (1968); Os incompreendidos
(1959); Fitzcarraldo (1982); “M”, o vampíro de Dusseldorf (1931);
Dr. Mabuse (série das décadas de 1920 e 1930 dirigida por Fritz Lang); Metropolis
(1927); O gabinete do Dr. Caligari (1920); Nosferatu (1922), Casablanca
(1942), Morangos Silvestres (1957); Deu a louca no mundo (1963); Fanny
e Alexander (1982)...além daqueles que não me lembro no momento. Estes e tantos
outros que nos trouxeram enlevo, alegria, emoção, riso, medo, entusiasmo, surpresa
- sensações que permitiam esconder por algum tempo as preocupações e
contrariedades.
Se puder, um dia ainda escreverei em detalhes
sobre trilhas sonoras memoráveis, como as composições de Nino Rota para os
filmes de Fellini e as músicas que Stanley Kubrick sabia, como só ele, escolher
para seus filmes.
Até agora quase não falei sobre as salas de
cinema da época. Algumas eram cômodas e podiam prover um ambiente favorável
para se levar a namorada ou a moça com quem se pretendia namorar. Outras nem
tanto. Na praça Roosevelt por exemplo, os recintos apertados do Cine Bijou onde
eram exibidos filmes de qualidade, e na rua da Consolação, as duas salas do Cine
Belas Artes. Os cinemas do centro como o Paissandu, Metro e Marrocos já estavam
decadentes, mas subsistiam o Metrópole e o Copan. E o Comodoro, na avenida São
João, com três projetores em tela curva, onde em 1965 vimos As 7 maravilhas
do mundo. Os melhores situavam-se na região da avenida Paulista - as
grandes salas do Bristol e do Liberty, no Center 3, o Astor, no conjunto Nacional e o
Gazeta. Na rua Augusta, o hoje “Espaço Itaú Unibanco” e do outro lado Vitrine e
CineSesc, este o melhor de todos. Na Paulista com Joaquim Eugênio de Lima o Top
Cine, onde assistimos aos filmes do Éric Rohmer e à fascinante sequência de
François Truffaut, iniciada com Os incompreendidos e vivida por Jean-Pierre Léaud no insólito papel
de Antoine
Doinel.
Não poderia mencionar salas de cinema sem falar do Hollywood,
tradicional cine de rua situado no aclive suave da Voluntários da Pátria, em
Santana. Com mais de mil assentos e provido de todos os equipamentos (inclusive
uma lanterninha uniformizada) era confortável para um cinema de bairro e
poderia até ser considerado como uma instituição. Lá assistimos A Noviça
Rebelde, clássicos de Alfred Hitchcock como Um corpo que cai, Frenesi, Marnie,
confissões de uma ladra e Disque M para matar, A corrida maluca (1968)
...os pseudo-épicos da série Maciste e afins (décadas de 1950 e 1960) e
na onda dos filmes-catástrofe, O destino do Posseidon (1972).
Santana na época era quase provinciana, mas tinha vida e identidade
próprias e, perto de hoje, era um bairro pacato. Sua arquitetura, o comércio, a
atmosfera social e os tipos humanos que se via nas ruas ainda não haviam tomado
o rumo da deterioração que mais tarde viria a desfigurá-los. Eram pontos de
referência clássicos as igrejas de Santana, Santa Terezinha e N.S. Salete, a
biblioteca municipal e o castelo, as padarias Polar, do Comércio, Aviação e
Morávia, o CPOR, o Campo de Marte, o antigo Grupo Escolar Buenos Aires... no Alto
de Santana os colégios Santana, Imperatriz Leopoldina e CEDOM, o Hospital do
Mandaqui, a caixa d’água e o restaurante Chácara Souza...na rua Voluntários da
Pátria (onde na Quaresma passava uma procissão) e imediações o “Cordão de ouro
discos”, a fábrica de chocolates LAF, Violões Di Giorgio, Casas Pernambucanas, Bar
do Justo...e o cine Hollywood.
Vamos nos lembrar daquele universo peculiar tal como era nos
anos 50 e 60. Só quem nele habitou poderia se dar a estas divagações...
Abril, 2024.
A continuar como “Minha
vinda para Santana”